“DESTRUIR
A ARMADURA: BREVE CONTO SISTÉMICO FAMILIAR – TENTATIVA DE SUICÍDIO
DE UMA ADOLESCENTE E O ENCONTRO COM A FAMÍLIA”
Utilizando as palavras de outro terapeuta familiar “fazer
terapia não é resolver problemas ou corrigir erros, mas mergulhar
no mistério das famílias e do encontro” (Ausloos).
Tentarei demonstrar-vos esse encontro recorrendo a uma família
sujeita a uma fonte de stress devido a depressão de um familiar, uma
adolescente. De referir que, neste caso, a família vive um momento
imprevisto, que ocorreu inesperadamente.
Era uma vez uma família de 4 elementos que vivam numa “armadura”.
A mãe, 55 anos, doméstica, de olhos azuis carregados e tristes, o
pai 57 anos, técnico de electricidade, de olhar igualmente pesado.
As filhas, Maria de 15 anos e Sónia de 30. A Sónia já se
autonomizou, casou “jovem” para “fugir” às regras dos pais.
Os seus olhares fixam-se
no chão, evitando o encontro.
Vêm encaminhados pela psicóloga de Maria, pois fez uma tentativa de
suicídio por intoxicação medicamentosa há cerca de 3 semanas e a
família não sabe o que fazer nem como reagir. “Ela passa o dia
inteiro de olhar vazio, não dorme, não quer comer, depois irrita-se
comigo, se a contrario grita que quer morrer”, verbaliza a mãe,
invadida por queixas físicas e somáticas, “o meu coração não
aguenta, a minha tensão dispara”. A mãe decidira construir a sua
armadura, onde os medos e receios encontravam lugar acolhedor
no seu corpo, traduzindo-se em dores físicas.
O pai, homem robusto, de mãos marcadas pelo trabalho no campo, “não
sei o que se passa com ela, tem tudo, damos-lhe tudo, trabalhamos no
duro e ela faz isto, fica assim, não é forte”. Decidira também
ele construir a sua armadura, onde imperava a ideia de que
sentir-se deprimido é para os
menos fortes, inibindo toda a sua tristeza, só perceptível
ao olhar mais atento e profissional,
refugiando-se no trabalho.
A irmã, de expressão frágil, “não sei porque não me pede
ajuda, sei que a adolescência é difícil mas isto de querer morrer,
não percebo” (e chora). A sua armadura era a do evitamento,
passando longos períodos sem dar notícias à família, recorrendo a
alimentos para, psicologicamente, se saciar de vazios familiares
sentidos.
A Maria, de olhar triste mas postura altiva e um pouco arrogante,
“vocês não entendem, estou farta de tudo, não aguento mais”.
Descreve-se como uma pessoa triste mas que não demonstra, “mostro
que sou forte, que não brincam comigo”, substituindo a tristeza
pela irritabilidade e raiva na relação com os outros. Não gosta da
sua imagem, sente-se gorda, “burra” e inferior. Construiu a
armadura mais sólida recorrendo a todos os materiais
encontrados, escondendo e privando o seu corpo de alimentos, a sua
vida de amor e afecto. Isolou-se. Foi assim que desejou e quis
morrer.
A família apresenta-se exausta, onde impera o medo da morte de
Maria, inibindo os familiares de verbalizações espontâneas com
receio do que possam despoletar.
Encontram-se dominados pelo medo, medo que os aprisiona num espaço
solitário, onde cada um sofre isoladamente, acreditando que a
comunicação familiar sobre o mal-estar poderá agravar o estado de
Maria.
Construíram desta forma uma armadura, na esperança de
protecção da família, respondendo aos desejos imediatos da
adolescente.
No trabalho com esta família era urgente destruir a armadura
de forma a cada um expressar-se livremente.
E assim fomos, bem devagarinho, ajudando a família na sua
comunicação, na verbalização dos afectos e na
imposição de limites na relação com a adolescente.
O pai foi o primeiro a destruir a sua armadura, quis livrar-se
dela por já estar muito pesada. Substituiu por apoio e firmeza na
relação com a filha e passou a trabalhar apenas o necessário.
A mãe foi a seguinte, o seu corpo deu sinais de melhoria, deixou as
queixas físicas e passou a não ter receio de contrariar a filha.
A irmã conseguiu aproximar-se da família, mantendo-se mais presente
e constante. Até emagreceu.
A Maria, que era quem transportava a armadura mais pesada,
ainda não a deixou completamente.
Continua a sentir que por vezes precisa dela... Está mais leve, já
não a usa todos os dias...
Decidiu não morrer!
A família reorganizou-se após a crise, alterou a sua dinâmica
relacional, modificou os estilos de comunicação, onde o tema do
sofrimento e desejo de morte da filha deixaram de ser tabu.
Foram necessários vários encontros com os familiares, ajudando-os
na expressão dos medos e angústias e transmitindo o que são
episódios depressivos e o que fazer em caso de risco de nova
tentativa de suicídio.
Foram activadas as competências da família, os seus recursos
levando ao crescimento, transformação e evolução.
É de salientar que muitas crises são favoráveis, no sentido que
representam a mudança de que algo de importante e mais sadio, se
transforme nas relações familiares.
Em última análise, as famílias diferenciam-se na forma como são
capazes de elaborar as crises, ou seja, as vias que lhes permitam a
reestruturação que os faz avançar no caminho da co-evolução
(Minuchin, 1979, Alarcão 2000).
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